segunda-feira, 5 de maio de 2008

Memória fotográfica.

Um pai ausente, era o que era. Por mais que ele revisse as fotos eram raras, muito raras, aquelas em que ele aparecia. Onde estivera todo aquele tempo? O que fazia ele, para não estar ali?

- Eu? Tirava fotos, filho. – respondeu.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

A dança da cadeira

Eu? Faço cadeiras.
Cadeiras como esta.
Boa, sólida, confortável.
Sou eu que a faço.
Só eu que a faço?
Não! Somos muitos! Uma equipa!
Na verdade eu aperto um parafuso.
Um parafuso da cadeira.
Sei cortar madeira?
Não é preciso, já vem cortada...
Estofar a cadeira?
Não é preciso já vem estofada!
Montar a cadeira?
Não. Sei qual é o meu lugar!
Aparafusar, isso sim.
Aparafuso como ninguém.
Aí sou único!
Bom, único não, único não sou.
Eu ponho um parafuso,
a cadeira leva doze...
sou um numa dúzia.
Aperto parafusos,
todo o dia parafusos,
parafusos, parafusos,
o mesmo parafuso,
o raio do parafuso
todo o dia o parafuso
todo o mês o parafuso,
todo o ano, todos os anos
o mesmo parafuso apertado
os dias em parafuso,
sentado numa cadeira
que não sei como se faz.

Fala-se que para o ano
vem aí uma máquina
que aperta parafusos
tão bem ou melhor
em metade do tempo
todos ao mesmo tempo.
Se assim fôr, que vou fazer?
Eu que não sei fazer nada,
nem cadeiras sei fazer
e faço-as há tantos anos...
Parafusos à máquina, sinceramente...
Aparafusar é uma arte!
A alma da cadeira, os parafusos!
Se estão lassos tudo estala, tudo dança,
não há segurança,
e um homem precisa saber onde se senta
sentir solidez debaixo do corpo.
Experimente, sente-se!
Sou eu que as faço!
Boa, sólida, confortável,
sou eu que a faço:
a cadeira da minha vida.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O Domador

"- Parabéns! É preciso ter coragem!" - disse-lhe o amigo.
Naquele momento ele sentiu que toda a sua roupa se tingia de vermelho e dourado, sentiu crescerem-lhe galões dourados sobre os ombros, um chapéu alto e brilhante na cabeça, botas de cano, bigode farto, olhar intrépito, chicote na mão, coragem na outra, ali, todo, inteiro: o domador de feras.
Mas depois pensou...
Talvez as botas não dessem muito jeito, porque eles eram muito mais rápidos a brincar do que os felinos mais ágeis... e aquelas botas eram um bocado rígidas...
E mesmo o chapéu... até os domadores de feras têm que tirar o chapéu para pôr a cabeça na boca dos leões... Ele também teria que abandonar o chapéu para encostar a cabeça às suas feras.
E o chicote,que fazia os tigres saltarem aros de fogo, também não precisava dele para que os seus saltassem por todo o lado.
Mesmo o bigode, farto como uma juba, que metia os leões a uma distância recomendável, talvez não fosse necessário, não fosse dar-se o caso de deixar os seus a uma distância maior do que a desejável.
Até os galões dourados que encorpavam a figura do domador seriam incómodos, quando os seus lhe saltassem para os ombros e se instalassem às cavalitas...

"- Sabes," - disse ele ao amigo - "eu não preciso de tanta coragem... só vou ter mais um filho."
E sorriu, como os domadores não podem, do alto das suas caras ferozes.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Encontro Doppler

Primeiro a ânsia, a curiosidade,

a espera.

A espera dos dias.

As horas de espera.

A sala de espera.

Como se pode ter saudades de quem não se conheceu?



Tic-tac-tic-tac-tic-tac



No silêncio enternetecido o eco de um som,

rápido e repetido.

Coração de pássaro,

pulsar da Terra.



Tic-tieu-tic-tieu-tic-teu



Todo o tempo liquefeito,

os segundos transmudados

por aquele diapasão:



Tieu-tieu-tieu-tieu-tieu-tieu



E naquele ritmo fugaz , escondido espreita

o próprio sentido da eternidade.





P.S. - Este poema é obviamente uma derivação do anterior "À espera". Foi escrito a pensar numa amiga, que está de esperanças, a propósito da sua primeira ecografia. A base de que parti foi a minha própria experiência de estar grávido, e em particular o som que aqui se pode ouvir. Este som ficou para sempre marcado em mim, de tal forma que basta invocá-lo à memória para imediatamente o ouvir. O primeiro som de um filho. Obviamente, como se pode ouvir no vídeo, a primeira frase deste texto foi composta naquele dia: coração de passarinho.
Normalmente gosto de de simplificar os meus textos: o normal será que perca progressivamente expressões, que apure conceitos, que lime arestas que depure.
Mas neste caso não estava inteiramente satisfeito. Curiosamente, quanto mais alterava o texto mais tinha pena de perder o anterior. Por isso ficam os dois.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Á espera.

No silêncio enternetecido o eco de um som,
rápido e repetido.
Coração de pássaro.

Quem disse que a eternidade
se media em tic-tac?

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Autêntica magia.

O mago foi à janela consultar os astros: de um lado o sol aproximava-se da linha do horizonte, as nuvens coloriam-se de luz, o céu escurecia, dando relevo à primeira lua, enorme, cheia e amarela. Vénus, altaneiro, anunciava as estrelas, ainda veladas. Bandos de pássaros inundavam o ar em revoadas de chilreios.Sinais auspiciosos: estava um fim de tarde mágico.O mago desligou a luz do escritório e foi para casa.Chegou antes da sua mulher e das crianças. Foi para a cozinha e com uma varinha em forma de colher, alguns alimentos, um pequeno caldeirão ao lume e um pouco de magia, preparou o jantar.Daí a pouco chegava a feiticeira , com as crianças. Com alguns gestos de todos, como por magia, a mesa estava posta, os pratos servidos, todos à mesa comendo e conversando.A poção que ele preparara estava deliciosa e todos conheciam os seus poderes medicinais. Também o prato principal exibia os apurados filtros em que fora preparado.Para ajudar as crianças a comer, a maga tirou de uma velha cartola vários coelhos, com os quais contou uma história.Depois, claro, maçãs vermelhas, naturalmente propensas a feitiços de adormecer, e as crianças subitamente cheias de sono: fora um dia tão cheio! Enquanto a feiticeira lança feitiços de limpeza e arrumação na sala de jantar e na cozinha, o mago levita as crianças para o quarto. Com um gesto, fiat lux! Com outro as crianças deitam-se. Então ele aponta o foco de luz para a parede e começa alguns passes da sua melhor magia: algumas fórmulas mágicas, alguns gestos estudados e sobre a parede as sombras das suas mãos ganham vida, sob a forma dos mais diversos bichos. Ele conta a sua história e consegue, às vezes, o encantamento do riso, por vezes, o feitiço da imaginação.Quando termina as crianças continuam ainda com as próprias mãos, imaginando novos passes, novas criaturas, novos enredos.O mago deixa a luz ainda um pouco, para que possam contunar o seu exercício de aprendizes de feitiçaria. Afinal a magia não se aprende num dia e eles têm tanta capacidade...O casal de feiticeiros sabe que outras magias disputam a sua, que outros lançam feitiços mais longe, maiores, mais vistosos. Mas nem toda a magia é igual e eles têm muita esperança nestas crianças. Elas mostram ter poderes extraordinários! Um dos seus melhores feitiços atinge-os aos dois em cheio no coração quando vão tapar os pequenos aprendizes adormecidos e um deles suspira no sono: o seu coração cresce, cresce tanto que inunda todo o mundo de uma luz especial, de uma felicidade imensa.Como é possível - perguntam-se - que um suspiro adormecido contenha tanta magia?

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

O dia das tartarugas do meu filho.

Ca-ma-rão. Tudo o mais é digestão.